LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DECORO: BRASIL X ESTADOS UNIDOS 

Autor:

Prof. Arimathéa Gomes

O tema à primeira vista, pode parecer insignificante. Mas não é. Especialmente, desde o dia em que o bilionário Elon Musk, que lidera uma legião de fãs e ocupa a posição do homem mais influente do governo americano, ergueu o braço com a palma da mão para baixo após discurso na posse do presidente norte-americano Donald Trump. Dado a notável influência do dono da X, o gesto vem sendo imitado em vários lugares, inclusive no Brasil. (no Município de Catanduva, SP, foi divulgado um vídeo de um grupo de 11 homens. Eles estão sendo investigados – https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2025/01/29/policia-investiga-grupo-que-imitou-gesto-de-elon-musk-em-video-viral.ghtml  ).

Houve divergências sobre a intenção do gesto de Musk. Porém em sua esmagadora maioria a imprensa internacional interpretou o gesto como uma evocação de uma especial forma de saudação empregada pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial. (Sieg Heil). 

É uma afirmação grave em razão da simbologia do gesto e da carga tenebrosa que ele carrega, mas de fato, somente o autor do gesto pode esclarecer a real intenção. 

O que é relevante para nós é que no sistema legal da liberdade de expressão vigente no Brasil, o gesto é considerado ILEGAL.

Diz  o artigo §1º do  art. 20  da lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989.  “Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo.”

No Brasil, há precedentes judiciais (STF habeas corpus nº 84.424.) que confirmam a interpretação de que o direito à liberdade de expressão NÃO protege a incitação ao racismo e outros discursos de conteúdo odioso.

Informação não é conhecimento

Inúmeras postagens nas redes sociais lançaram opiniões, sem qualquer   fundamento atacando, ou defendendo, sem base legal, a chamada LIBERDADE DE EXPRESSÃO (artigo 5º, parágrafo IV: “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Mas o que entender por Liberdade de expressão??

Muitos dos erros grosseiros que dominam as mensagens nas redes sociais sobre esse assunto tem algo em comum que merece especial atenção, pois podem gerar consequências graves. 

Está havendo uma grande confusão entre o regramento jurídico da liberdade de expressão vigente no Brasil e nos Estados Unidos. Pior: pessoas se expressando aqui, com base no regime jurídico que só vigora lá, nos Estados Unidos

Óbvio que   a LIBERDADE DE EXPRESSÃO constitui um dos pilares de sustentação do Estado Democrático de Direito (art1ª da CF). Todavia, o regime jurídico de cada país dá a essa liberdade sua própria configuração, desenvolvendo a forma de aplicar esse direito aos casos concretos ao longo da história. Nasce daí o real contorno para os limites do exercício da liberdade de expressão.

É preciso se ter em mente que uma das principais diferenças entre o regime da liberdade de expressão (freedom of speech), nos EUA e no Brasil está no fato de que a liberdade de expressão na América se consolidou de uma forma mais permissiva que não encontra similar no mundo.

Na América do Norte predomina uma espécie de noção de livre mercado de ideais (free market place of ideas), em que se defende a ausência de interferência estatal (baseado na interpretação da 1ª Emenda à Constituição norte-americana).

Em ambos os países a regra geral é a da proibição da censura prévia (previous restraint) mas em outros aspectos se diferenciam muito.

Perigo Claro E Iminente

Já que em cada sistema jurídico o Direito à Liberdade de Expressão assume características diferentes, para compreendê-lo é necessário conhecer as regras previstas na Constituição para o tema e, ainda, as decisões judiciais que aplicaram aquela regra ao longo dos anos. Não é, como se vê, uma tarefa fácil, mas sim um tema para horas de estudo.

Como o espaço é curto e o tempo escasso, vale apresentar aqui um ponto central que diz respeito ao discurso de ódio (hate speech).   

Ao enfrentar casos concretos, a Suprema Corte Americana fixou um critério importante   criado especialmente pelo Juiz Olivier Homes em 1919. E    o critério se resume na expressão clear and present danger, ou seja, da existência de   perigo claro e iminente, de uma ação concreta que venha a violar um outro direito fundamental.

Gritar “Fogo” no Teatro

Esse critério não resultou de uma criação abstrata. Decorreu da necessidade de enfrentar problemas reais. 

Por ocasião da primeira guerra mundial havia uma forte campanha dos pacifistas distribuindo panfletos contra o alistamento militar. O Congresso reagiu e aprovou leis considerando tais condutas como criminosas, pois poderiam afetar o esforço nacional de guerra do país.

Se instaurou então um grave conflito que foi julgado pela Suprema Corte, Caso Schenck v. United States, 249 U.S. 47, 51-52 (1919). O ato de distribuir panfletos estimulando os jovens a não se alistarem estaria assegurado pela liberdade de expressão? 

A resposta bem demonstra como o tema é espinhoso e complexo, e mereceu o juiz Holmes uma explicação no seu voto que validou o critério clear and present Danger.

      Veja: “Nós admitimos que em muitos lugares e em épocas normais os réus ao dizer que tudo aquilo que foi dito na circular estariam em seus direitos constitucionais. Todavia, o caráter de cada ato depende das circunstâncias nas quais ele foi feito. A mais rigorosa proteção da liberdade de fala não protegeria um homem de, falsamente, gritar “fogo” no teatro e causar pânico… A questão, em cada caso, está (em saber) se as palavras usadas o foram de tal modo a criar um perigo claro e iminente (a clear and present danger), o qual causará males efetivos que o Congresso tem o direito de evitar.” 

 O exemplo singelo citado no voto também confirma a importante ideia de que não há direitos que possam ser exercidos de forma absoluta, sendo indispensável em caso de colisão que a interpretação os harmonize.

Na prática, a decisão da Suprema Corte   significa que poderá haver proibição ou limitação à liberdade de expressão, sempre que o discurso contendo palavras provocadoras, que estimulem o conflito (fighing words) ou de ódio (hate speech), trouxer risco imediato e concreto a um direito fundamental de outra pessoa ou grupo social. Sendo assim, não se admite restrição à liberdade de expressão nos casos em que ocorre a mera defesa geral de ideais (general advocacy of ideas)”. Funciona como uma espécie de liberdade de expressar até aquilo que a pessoa odeia.

É com base nessa interpretação que muitos se surpreendem ao visualizar na internet passeatas de seguidores do nazismo em cidades americanas, ou mesmo, passeata da Ku Klux Klan (grupo supremacista branco). Mas, de acordo com o sistema legal americano de exercício do direito à   liberdade de expressão, a Suprema Corte já julgou e decidiu que tais condutas     são permitidas.

Caso Brandenburg vs. Ohio

Pode parecer assustador, mas no famoso caso   Brandenburg vs. Ohio, (Clarence Brandenburg, era um membro da Ku Klux Klan, que convocou uma marcha em Whashington). A Suprema Corte declarou a constitucionalidade de manifestações de ódio contra negros e judeus e a inconstitucionalidade de lei que restringiam o uso de símbolos que remetessem a práticas de discriminação racial. Nesse julgamento utilizou o critério “imminent lawless action” (ação ilegal iminente). Portanto, somente discursos com potencial para instigarem ou causarem uma violação de direitos estariam a descoberto da proteção da liberdade de expressão (freedom of speech) De novo o critério clear and present danger ou sua variação “imminent lawless action foi aplicado. 

Disso resultou em não proibir, pois entendeu não estar havendo incitação de violência iminente. Como se vê a vastidão do direito à liberdade subjetiva é tamanha que alcança essas situações extremas.

Insegurança nas decisões do STF

Não há nada de errado em se fazer críticas fundamentadas e respeitosas a determinadas decisões do STF sobre o tema da liberdade de expressão. Afinal, é nosso dever buscarmos o aperfeiçoamento das nossas instituições. Mas essas críticas devem ser feitas sob o império da nossa Constituição. 

Devemos nos empenhar em encontrar nosso próprio caminho de preservação estável e segura da liberdade de expressão segundo o modelo nacional instituído pela CF de 1988 e não o modelo dos americanos que data do período aristocrata e escravagista.

 *Para os que desejarem um aprofundamento do tema sugiro a leitura de “A Liberdade de Expressão e o Problema do “Hate Speech”In: SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006):

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